Boteco Das Tertúlias #10 | Trabalho

Este mês discutem-se profissões no Boteco. No texto em baixo falo da minha experiência profissional – hum, experiência profissional, tão chique! – e deixo um vídeo para vos dar aquele empurrãozinho que é preciso para que chegue a Sexta-feira.

Espero que gostem e não se esqueçam de visitar os blogs das outras botequeiras para saber o que é que elas têm andado a fazer da vida! Nos links abaixo!

Anas Há Muitas

A Limonada Da Vida

Espresso And Stroopwafel

Life’s Textures

 

Bom fim-de-semana!

*

O meu primeiro trabalho foi aos dezoito anos. Ou melhor, o primeiro trabalho a sério. O primeiro trabalho mesmo foi de férias, aos dezasseis, num bar de praia lá do sítio. Lá passei os  três meses de Verão, no intervalo entre o 11º e o 12º ano, doze horas por dia, a fazer de tudo um pouco na cozinha. Jurei que hotelaria, nunca mais. O stress de um lugar sempre cheio, com pedidos a sair constantemente, e uma equipa sem gerência que lhe desse alguma organização, fez-me entender que aquele não era emprego que eu quisesse repetir, mesmo com melhores condições. Ensinou-me a respeitar ainda mais quem serve a uma mesa, a ser mais paciente a aguardar pedidos.

O primeiro emprego a sério foi então aos dezoito, como assistente dentária. Aqui demorei-me quatro anos; cresci, vi passar por mim muita gente, cimentei as melhores amizades – que duram até hoje – e aprendi que afinal as minhas mãos não são assim tão inúteis. Era um trabalho minucioso e interessante; os pacientes, nem sempre faziam jus ao nome, e os títulos – como é costume em Portugal – também aqui eram tudo e ditavam às vezes a gravidade de uma urgência. Aqui trocaram-me também o vocabulário, e arrancar um dente era afinal uma extracção, um inchaço passou a ser edema, e quando me pediam para que lhes passasse o percutor era, nada mais nada menos, do que um martelo. Sim, também usávamos disso, entre um outro sem fim de ferramentas. Assisti deliciada a cirurgias onde se retiravam pedaços de osso do queixo para colocar na área dos incisivos (ou onde fazia mais falta), e onde o tecido do palato – vulgo céu da boca, que é para onde vão os dentistas quando morrem – servia bem para cobrir recessões gengivais e viamo-lo passado semanas a regenerar sem problema, qual cauda de camaleão. Vi recuperações fabulosas, e ganhei também aquele sentido de humor sádico comum em quem trata da saúde aos outros. Perdão, dos outros.

Ao fim dos quatro anos, e porque o emprego era interessante mas o ambiente nem sempre era o melhor, acabei por me despedir e ir em busca de algo diferente. Não sabia bem o que queria, mas sabia que  precisava de uma pausa de ser assistente dentária . Calhou-me o atendimento ao público.

Já sei, já sei o que estão a pensar: atendimento ao público é do piorio. Têm razão, mas eu gostava. De todos, é o único emprego de que realmente tenho saudades. Gostava de falar com as pessoas, de as ajudar o melhor possível, de preparar as peças para colocar na montra (trabalhei no aeroporto, numa loja que vendia prata e pedras naturais) e, dos dias em que dava vontade de mandar os clientes a sítios que aqui não posso dizer, ficavam as estórias mirabolantes para contar. Nós queixamo-nos mas, no final, quem não gosta de medir o cliente mais maluco que lhe apareceu pela frente? No aeroporto, a acrescentar a tudo o resto, havia ainda uma camaradagem que eu não encontrava nas raras vezes que tinha de ir servir a mesma loja no shopping: toda a gente, ao passar, dava bons-dias. Infinitas vezes tive de dar indicações sobre a casa de banho, ou onde era a porta 15 (do outro lado todo do aeroporto. Oh menina, do outro lado todo?? Vim até aqui e vou ter que ir para o outro lado todo?? O aeroporto não é assim tão grande, minha senhora). Passava pelo detector de metais todos os dias, e a minha comida era escrutinada pelos raios-x, várias vezes por chalaça os seguranças me quiseram confiscar a pizza que encomendava a meias com alguém de outra loja e que ia buscar à zona das partidas, porque o estafeta da telepizza não podia passar para a zona de embarque. Ah, belos tempos.

Do trabalho em si, aprendi sobre pedras, como limpar pratas e como criar espaço de arrumação onde não há. Era a verdadeira feiticeira da bricolage, perdida a fazer divisões com caixas de cartão velhas. Nunca fui tão feliz a acordar às 5h00 da matina para ir trabalhar, e a sacrificar feriados e Domingos.

Agora, agora tenho o melhor e o pior da mesma moeda. Menos horas de trabalho – estou a fazer 28 horas por semana – mas um trabalho mais pesado e, no fim de contas, pouco compensador. Nunca trabalhei em limpezas em Portugal, mas posso dizer que cá sou bastante bem tratada. Nunca fui olhada de soslaio como sendo só a empregada, e tenho uma relação bastante boa com os meus clientes. Calhou-me em sorte, a maioria já o são há quase cinco anos. Trocamos presentes no Natal, contamos histórias da nossa vida uns aos outros e, de resto, paga bem. O único senão do trabalho – além do cansaço inerente a quem limpa e anda de um lado para o outro o dia todo – é a sensação de trabalhar para o tecto. Não há trabalhos terminados porque, mal acabamos, tudo volta ao início e  há mais para fazer, mais para limpar, mais para arrumar. Na semana seguinte, tudo recomeça. A sensação de trabalho cumprido dura pouco e, depois de semanas e semanas nas mesmas casas, tudo parece rotineiro. Faço o melhor que sei e posso, mesmo nos dias em que mal apetece fazer seja o que for, e sou recompensada não só monetariamente mas principalmente quando me dizem que estão contentes comigo e com o meu trabalho. Aí, esqueço que nem sequer gosto de fazer isto.

Amanhã, como acontece a cada quinze dias, tenho a sexta-feira inteirinha para mim. Para dormir até mais tarde, preguiçar o quanto me apetecer e, esta semana, para visitar um circo ambulante de livros que está estacionado aqui perto, ver o que por lá há; nem tudo são cardos.

E porque trabalhar também pode – e deve – ser prazeroso, deixo aqui um vídeo dos irmãos noruegueses Ylvis, responsáveis pelo êxito mundial What Does The Fox Say. Altamente educativo, estes moços são um favor à humanidade. Work it. 😉

Carina Pereira

10 thoughts on “Boteco Das Tertúlias #10 | Trabalho

  1. Limonada diz:

    A mudança de vocabulário no dentista deve ser para o paciente não entrar em pânico. Já viste o que era o dentista dizer “passe-me aí o martelo?”? Eu saltava da cadeira na hora!
    Agora a sério! Tenho um enorme respeito por ti miúda. Não faço ideia que escolaridade tens, e para o caso também pouco importa, pois tu desmistificaste o meu conceito de empregada doméstica. O meu, e se calhar o de muita gente. Sempre tive a ideia que ia trabalhar para as limpezas quem não consegue emprego em mais lado nenhum por não ter qualificações. Mas tu tens, e até já tiveste outros empregos e és uma míuda culta que adora ler e que lê bastante, pelo que me apercebo. Não és de todo a típica mulher da limpeza. Parabéns por isso, parabéns por teres orgulho no que fazes e por seres boa naquilo que fazes. Sou tua fã!

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    • contadordestorias diz:

      Ahahah, ó Susana isto agora até me babei! :p Só tenho o 12º mas acredita que a minha ideia de empregada doméstica era a mesma, acho que é geral, quando alguém se queixa do emprego o normal é dizer “olha, vê lá se queres ir para limpezas!”. Suponho também que aqui as condições sejam melhores do que em Portugal, o que também facilita e, trabalho só 28 horas, é cansativo mas faz-se. Se fosse full time era bem pior! Quanto ao vocabulário médico sim, por um lado é para o paciente não nos fugir LOOOOL mas também para mostrar que oh, que cultos nós somos profissionais da saúde. A maior parte das vezes insistiam comigo para perguntat ao paciente se esatva com edema, muitas pessoas não percebiam, e lá tinha eu que recorrer ao inchaço. Levava nas orelhas por perguntar desta forma mas se fosse da outra muito pessoal não entendia! Eheheheh 😀 É reciproco então, até porque eu admiro qualquer pessoa que não tenha medo de pegar nas coisas e ir! 🙂

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